Viajar: a magia da finitude
‘Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver” Amyr Klink
De forma consciente ou não, todos os elementos que constituem o lugar que chamamos de casa influenciam quem somos e como escolhemos viver. A família, os amigos, o trabalho, o que comemos e bebemos, o clima, o meio que nos transporta ao nosso destino e tantas outras escolhas consolidam uma realidade que interfere em nossos valores, nos dá forma e, também, constrói nossos limites.
Viajar é a oportunidade de libertar-se de tais condicionamentos para desbravar o mundo e a si próprio, sedimentando incontáveis outras influências em nossa bagagem cultural e nos tornando muito maiores do que poderíamos sonhar.
Claro que, ainda que distantes de casa e afastados de suas fortes influências, iremos experimentar o mundo por meio de uma individualidade já constituída. Inevitavelmente, vamos julgar, escolher e, também, nos permitir, de acordo com as estruturas mentais, físicas e emocionais formadas pelas experiências passadas. Existem formas de transpor tais limitações, mas, em geral, não conseguimos nos desfazer dos próprios olhos, condicionados, para enxergar de maneira imparcial e livre.
Para que comprometamos o mínimo possível as novas interferências, é preciso ser flexível e abrir-se ao novo. Compreender que valores, moral e costumes são mesmo uma questão cultural e temporal. Mergulhar nas novas culturas e perceber as outras milhares de possibilidades de se entender e desfrutar da existência.
A novidade nos faz mais atentos
Em nosso dia a dia ordinário, construímos mecanismos para facilitar nossas vidas e liberar espaço na mente para nos concentrarmos no trabalho, estudo ou outro assunto mais conveniente. Assim, produzimos os condicionamentos. Infelizmente, eles têm um efeito colateral: com frequência, deixamos de enxergar elementos que compõem nosso dia comum. Móveis, paisagens e até mesmo pessoas, ainda que as mais próximas e amadas, ficam invisíveis no automatismo da rotina.
Seja você um mochileiro, farofeiro, o turista da excursão, um explorador periódico ou um nômade, deve saber que, nas viagens, tudo em torno é novo, diferente, desafiador. Livre da rotina e de grande parte dos condicionamentos, a mente está em alerta, captando o entorno com mais eficiência e abrangência. Estimulamos e extraímos o máximo de nossos sentidos e somos bombardeados por uma profusão de cores, perfumes, sabores, paisagens e conversas.
Ao processarmos tantas informações, conectando-as com tudo o que já conhecemos, disparamos um processo de criação grandioso e singular, que inspira ideias e favorece a nossa capacidade de adaptação. O resultado desse fenômeno é único e incomparável à percepção de qualquer outra pessoa, pois depende da nossa visão particular, formada por um conjunto de genes e pelas experiência que já vivemos.
Viajar nos tira da zona de conforto e nos impulsiona a desenvolver novas habilidades. Cercados pelo desconhecido e o inesperado, lapidamos nossa capacidade de improvisar. Em maior ou menor grau, somos estimulados a pensar de formas diferentes para transpor, sobreviver ou simplesmente apreciar de forma plena uma determinada circunstância. Na prática, perder um voo em Marrakesh, desvendar o que diz a placa de trânsito em Bucareste ou flertar com o garoto swahili pode exigir uma redefinição drástica do que chamamos de jogo de cintura.
A maior viagem de todas: as pessoas
Algumas pessoas, quando viajam, buscam paisagens de tirar o fôlego; outras desejam saborear a comida típica do lugar; e existem, ainda, os amantes da história, do passado e de suas conexões com a nossa realidade. Aprecio muito todos esses aspectos, mas sou especialmente apaixonada por decifrar as pessoas: como vivem, como pensam, sentem e se comportam, quais são seus valores e sonhos.
As pessoas refletem o lugar que habitam. São o resultado do que, como grupo, viveram no passado, daquilo que se alimentam, do quanto a paisagem as inspira e da cultura que os direciona a escolher a forma de viver. Ao conhecê-las, desvendo o próprio lugar. Além disso, conectar-se às pessoas e interagir com elas é uma oportunidade de colecionar amigos, seja por poucos minutos ou para o resto da vida, e isso me preenche.
Tais conexões podem ainda criar envolvimento. Por isso, quando viajo, se tenho a oportunidade de estar misturada à vida cotidiana das pessoas locais, não a perco. Explorar um novo destino em parceria com um nativo me carrega a aprofundar a experiência e descobrir como, de fato, é viver ali.
Ao mesmo tempo, misturar-se à rotina e aos costumes de quem mora no destino não exclui a fantástica experiência de lançar-se só em alguns momentos. Desafiar-se no desconhecido, livres de outras influências, nos permite chegar às nossas próprias conclusões. Então, caminhemos algumas vezes sozinhos – e outras acompanhados.
Cada lugar vai despertar um diferente você
Novos lugares provocam diferentes estímulos que nos requerem diferentes respostas. Estamos expostos a infinitos gatilhos, catalisadores das mais diversas expressões da nossa individualidade. E assim, respondendo a novas paisagens, sabores, conversas e ideias, nos defrontamos com algumas versões de nós mesmos. Somos uma nova pessoa a cada lugar em que pisamos.
Por onde passamos, não apenas trazemos conosco um pouco daquele contexto, mas também deixamos ali um pouco de nós. E nem sempre nos trazemos completos para casa. Algumas vezes, a nova versão de nós mesmos, ou parte dela, fica para trás e, para reencontrá-la, é preciso voltar àqueles lugares (ou àquelas pessoas). E assim nos reencontramos, em milhares de fragmentos espalhados por um mundo tão grande quanto a nossa curiosidade decretar.
A viagem, em toda sua intensidade, é mágica por ser finita. Mesmo aos nômades, ela precisa extinguir-se para preservar sua natureza vivaz e enérgica e, nesse caso, iniciar a aventura seguinte de pronto. A finitude da experiência é o que a torna extraordinária. Viajar nos desperta um senso de urgência: é preciso aproveitar cada instante porque o término daquela vivência se aproxima. Isso nos remete à consciência da brevidade da própria vida.
Viajemos! Para dentro e para fora, explorando e engrandecendo nossa essência com a diversidade de um mundo sem fim. Vamos expandir a noção de tempo, mergulhando verdadeiramente nas experiências e perseguindo a eternidade nos detalhes. E valorizemos o instante, o momento exato em que dividimos a existência com cada destino e pessoa.